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Há um abismo entre a retórica ecologicamente correta dos defensores do crescimento acelerado da produção de biocombustíveis e a realidade dos locais onde esse boom já está acontecendo. Os maiores riscos são os impactos sobre a Floresta Amazônica e o Cerrado

 

Igor Fuser

 

No dia 5 de julho deste ano, enquanto o presidente Luis Inácio Lula da Silva afirmava, na abertura da conferência internacional de biocombustíveis promovida pela Comissão Européia, em Bruxelas, que não havia produção de etanol na Amazônia, os jornais brasileiros repercutiam a descoberta, três dias antes, de uma fazenda onde 1.108 pessoas trabalhavam na colheita de cana-de-açúcar em condições degradantes, análogas ao regime da escravidão. Essa fazenda, encontrada por uma equipe do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, formado pelo Ministério do Trabalho, pertence a uma usina de produção de etanol localizada no município paraense de Ulianópolis, em plena Amazônia Legal.[1] A conduta dessa empresa pode não expressar a realidade da agroindústria do açúcar no seu conjunto, mas chama atenção para o lado sombrio dos cultivos brasileiros ligados à expansão da demanda de etanol. O que o episódio revela, sobretudo, é o imenso abismo existente entre a retórica em favor do crescimento acelerado da produção de biocombustíveis e a realidade nos locais onde eles são fabricados.

 

O Brasil é o líder mundial das exportações de etanol, com 3,2 bilhões de litros vendidos ao exterior em 2006, e caminha para mais do que dobrar sua produção nos próximos cinco anos. A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Única), principal entidade do setor, prevê um salto dos 17,8 bilhões de litros da última safra, finalizada em abril, para 38 bilhões em 2012. Nesse período, 76 novas usinas deverão se somar às 325 atualmente em operação, e as terras ocupadas com canaviais aumentarão de 6,5 milhões de hectares para 10 milhões.[2] A estimativa é ainda modesta se comparada, por exemplo, com o estudo elaborado pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da Presidência da República (NAE), que vislumbra a possibilidade de o etanol brasileiro substituir, nos próximos 18 anos, 5% de toda a gasolina consumida no planeta. Para alcançar essa meta, a produção nacional  atingiria 85 bilhões de litros, cinco vezes o volume atual.[3] Dirigentes da Única calculam o potencial de aumento em até dez vezes.

 

A euforia em torno desses números astronômicos tem a ver com a explosão do interesse internacional pelos biocombustíveis, vistos como uma fonte de energia ecologicamente correta, capaz de compensar, ainda que parcialmente, a escassez de petróleo sem agravar o aquecimento global. O etanol, assim como o biodiesel, é considerado um combustível de “emissão zero”, pois o carbono que libera na sua combustão é equivalente ao que as plantas usadas como matéria-prima acumulam no seu crescimento natural. Enfim, a solução perfeita. Mas o discurso otimista da energia “verde” omite ou minimiza os impactos ambientais e sociais associados ao cultivo desses vegetais na escala gigantesca indispensável para que o etanol gere os efeitos econômicos almejados.

 

No caso da cana-de-açúcar brasileira, os ambientalistas têm apontado a alta probabilidade de que os biocombustíveis acelerem a devastação de ecossistemas frágeis, em especial o Cerrado e a Amazônia. Somam-se a esses riscos extremos os problemas ecológicos crônicos da monocultura açucareira, como as queimadas, o uso intensivo de fertilizantes e inseticidas e os resíduos tóxicos das usinas, especialmente o vinhoto. “Na avaliação das fontes sustentáveis de energia, é um erro considerar apenas o impacto causado no seu consumo”, adverte o agrônomo Mário Menezes, diretor-adjunto da organização ambientalista Amigos da Terra. “É preciso levar em conta os danos ambientais ocorridos em toda a sua cadeia produtiva.” Os críticos do etanol também vêem como motivo de preocupação as condições aviltantes que regem a atividade dos 1,2 milhão de trabalhadores nos canaviais e, ainda, as evidência, assinalada por organismos como as Nações Unidas e o Banco Mundial, de que a ênfase nos biocombustíveis está começando a prejudicar a produção de alimentos, agravando a fome mundial[4].

 

Vem daí a persistente desconfiança que os propagandistas brasileiros do etanol têm enfrentado em sua campanha para conquistar mercados externos. Desconfianças justificadas. Afinal, a produção predatória de commodities para a exportação – açúcar, borracha, café, cacau, carne, madeira, soja, entre outras – é responsável por grande parte da destruição da cobertura vegetal do país nos últimos cinco séculos. Os governantes e os empresários asseguram que o meio ambiente desta vez será preservado, mas a credibilidade dessa promessa se vê abalada pelo avanço descontrolado da devastação da Amazônia, que já perdeu cerca de 20% de sua área florestal, sem que os órgãos de defesa ambiental consigam deter o desmatamento. Como acreditar que o país adotará métodos sustentáveis na fabricação do etanol? De onde virá a terra para plantar tanta cana?

 

A resposta dos usineiros está na ponta da língua. “A cana ocupa apenas 1% da área agrícola do Brasil e, se a produção dobrar, não passará de 2%”, enfatiza Marcos Jank, presidente da Única.[5] Segundo ele, a ampliação dos canaviais ocorrerá somente em áreas degradadas pela criação de gado, vizinhas aos atuais cultivos, sem ameaçar ecossistemas relevantes. “O país possui 50 milhões de hectares em pastagens degradadas”, garante. Quanto à Amazônia, o argumento de Jank – e de todos os que negam a existência de risco para a floresta – é de que os canaviais são impróprios para aquela região, devido à intensa umidade do clima e à pobreza do solo.

 

Para o ambientalista Menezes, os usineiros difundem uma visão distorcida do panorama rural. “Grande parte das terras ditas degradadas ou sub-aproveitadas são, na verdade, pastagens arborizadas, que possuem um valor significativo do ponto de vista ecológico”, afirma. “Quando se fala em meio ambiente, não se pode pensar apenas na preservação da mata primária. Você pode ter ganhos ambientais também em áreas que já foram alteradas.” Ele lembra que essas zonas, cobertas por vegetação rasteira, abrigam uma rica diversidade, inclusive árvores, que  seriam derrubadas para a instalação dos canaviais. Em muitos lugares estaria em curso um processo de regeneração da mata nativa. “A ocupação dessas pastagens pouco produtivas para dar lugar à monocultura da cana trará prejuízos ambientais relevantes”, alerta.

 

Mas há danos piores, omitidos no discurso tranqüilizador dos usineiros. A devastação do Cerrado é, entre eles, o mais imediato. Por sua paisagem ressequida, menos exuberante que a das florestas tropicais, o maior ecossistema do Centro-Oeste costuma ser encarado com certo desprezo, o que facilita que seja destruído impunemente. No entanto, trata-se de uma região que abriga mais de 10 mil espécies de plantas (das quais 4.400 são endêmicas, ou seja, só ocorrem lá), 847 espécies de pássaros e quase trezentas de mamíferos. Ali se situam importantes mananciais de água. O ambientalista Ricardo Machado, da ONG Conservação Internacional, assinala que o Cerrado está desaparecendo mais depressa do que a Amazônia, num processo de destruição impulsionado sobretudo pelas plantações de soja, e agravado pela introdução dos canaviais.

 

De acordo uma pesquisa de sua autoria, o Cerrado mantinha, em 1985, cerca de 73% de sua vegetação original, mas nas duas décadas seguintes o avanço do agronegócio provocou uma devastação implacável, a tal ponto que, em 2004, restavam apenas 43%. Em vinte anos, destruiu-se quase o mesmo que em todo o período de presença humana anterior. Machado acredita que, no período posterior à pesquisa, o espaço ocupado por pastagens e pela agricultura na região vem se ampliando em um ritmo ainda mais rápido, de 2,2 milhões de hectares por ano. “Muitas autoridades e proprietários rurais justificam esse desflorestamento pelo fato de que o Cerrado não é coberto por florestas tropicais densas, como a Amazônia ou a Mata Atlântica”, escreve. “A posição deles ignora o fato de que esse bioma representa a região de savana mais rica em biodiversidade no mundo inteiro, com recursos aquáticos de grande importância para o Brasil.”[6]

 

As savanas do Centro-Oeste constituem a ponta-de-lança na conquista de vastas regiões do interior brasileiro pelos canaviais. O estado de Goiás registrou, no intervalo entre as colheitas de 1999/2000 e 2003/2004, um aumento de 81% na superfície utilizada pela cana-de-açúcar e, em 2006, já era responsável por 6,6% da colheita total brasileira. O atrativo de Goiás está na disponibilidade de mão-de-obra e nos terrenos planos. O oeste do Mato Grosso do Sul e o sudoeste de Minas Gerais (Triângulo Mineiro), zonas de predomínio do cerrado, também têm sido ocupadas por canaviais.

 

É inevitável que, onde quer que se instale, a monocultura do açúcar reproduza o modelo predatório de exploração que implementou no estado de São Paulo, o grande pólo da expansão do etanol, com 85% da produção nacional. O agrônomo Manoel Eduardo Tavares Ferreira, presidente da Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil, de Ribeiro Preto (SP), explica que, até a década de 1970, a região possuía 22% de cobertura vegetal nativa. A partir de 1975, quando os usineiros passaram a receber os generosos benefícios do Proálcool, com financiamentos estatais a juros negativos e longos prazos de carência, essa área se reduziu para menos de 3% na atualidade. O eixo da produção brasileira de cana-de-açúcar se transferiu do Nordeste para São Paulo, deslocou outros cultivos, como o gado, o tomate e as frutas, e a concentração da propriedade se acentuou. “A cultura canavieira – escreve Ferreira – avançou com voracidade sobre os campos de outras culturas rurais, e, em semelhante intensidade, o domínio das terras destinadas ao plantio da cana passou para as usinas, por força de aquisição ou de arrendamento”.[7]

 

Ele relata que, nos arredores da cidade de Ribeiro Preto, “os canaviais ocupam mais de 1 milhão de hectares de forma contínua, com fortes impactos sobre as matas ciliares, a biodiversidade e a produção de alimentos”. No vizinho município de Bebedouro, outrora a “capital brasileira da laranja”, o cultivo de cítricos caiu de 80% para 25% em menos de dez anos, substituído gradualmente pela cana-de-açúcar. Um relatório da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) constatou uma queda da plantação de alimentos em 2,6% em Minas Gerais, 4,1% no Espírito Santo e e 7,6% em São Paulo – declínio atribuído ao crescimento da cana-de-açúcar no Sudeste do país. Essas cifras indicam que, ao contrário do que afirma a agroindústria do etanol, a expansão da cana tem um efeito direto sobre os cultivos alimentares.

 

É difícil acreditar na tese de que os novos canaviais serão instalados em “pastagens degradadas” quando se observa a entrada maciça de capitais brasileiros e estrangeiros no negócio do etanol. Grandes parcerias, aquisições de empresas e novos fundos de investimento são anunciados quase toda semana. De acordo com a consultoria Datagro, o setor já atraiu, desde 2000, cerca de US$ 2,2 bilhões em investimentos externos.[8] A primeira fase da corrida do etanol foi marcada pela concentração da propriedade, num processo em que as usinas maiores compram as menores. Agora, a expansão exige mais terra, e de boa qualidade. A recuperação de áreas deterioradas, a fim de torná-las produtivas, requer muito tempo e gastos elevados, enquanto a lógica do agronegócio, em qualquer lugar do planeta, está voltada para o retorno rápido do investimento, com um mínimo de riscos. Como já ocorreu com a soja, nas décadas de 80 e 90, o atual crescimento do etanol se dá pela incorporação de novos territórios a esse cultivo, e não pela recuperação de áreas improdutivas. A Cosan, maior produtora de açúcar e álcool do país, apontou esse caminho ao anunciar a construção de três usinas em Goiás. Outro gigante do setor, a empresa Adecoagro, se associou ao megainvestidor George Soros e está construindo uma usina no Mato Grosso do Sul, num investimento de 1,6 bilhão de reais.

 

Um indicador do interesse externo pelo etanol brasileiro é a criação, em março deste ano, da Brazil Reneawble Energy Company (Brenco), sob a liderança de dois nomes ilustres: Henri Philippe Reichstul, ex-presidente da Petrobras, e David Zylberstein, que comandou a Agência Nacional de Petróleo – ambos os cargos exercidos no governo de Fernando Henrique Cardoso. Entre os participantes desse fundo, que planeja aplicar US$ 2 bilhões na construção de 15 usinas, estão o bilionário indiano Vinod Khosla, criador da Sun Microsystems, e o australiano James Wolfensohn, ex-presidente do Banco Mundial.[9] Tamanho ingresso de dinheiro só poderia provocar uma explosão nos preços das terras. Por conta do avanço da cana-de-açúcar, o preço do hectare no oeste do estado de São Paulo, região com tradição pecuária, disparou entre 2002 e 2007. De acordo com o levantamento do Instituto FNP, especializado em negócios rurais, um hectare na região de Ribeirão Preto passou de R$ 9 mil para US$ 21mil. Em Presidente Prudente, no extremo oeste paulista, o salto foi de R$ 3 mil para R$ 6,2 mil. No embalo da chamada “inflação do etanol”, muitos fazendeiros vendem ou arrendam as propriedades – e se mudam com seus rebanhos para lugares mais distantes. “A cana avança sobre as áreas de grãos, laranja e pastagem”, afirma a analista de mercado Jacqueline Dettman Bierhals, do Instituto FNP.[10]

 

Para onde vai o gado depois que é expulso pelos canaviais? Os usineiros afirmam que a valorização das terras leva os pecuaristas a adotar métodos modernos de criação intensiva, elevando a densidade do rebanho sem ampliar as áreas de pastagem. No entanto, a proporção de cabeças de gado por hectare teve um crescimento pífio no período de expansão dos canaviais, passando de 1,1 para 1,2. A suspeita é que boa parte desses rebanhos se desloca, mesmo, para áreas de fronteira agrícola, já que a oferta de carne não diminuiu. O agrônomo Menezes, da Amigos da Terra, avalia que “o atual modelo de expansão da cana-de-açúcar repete os mesmos passos da conquista do Centro-Oeste pelo monocultivo da soja”. O conceito chave, empregado por ele para desmontar a falácia de que a febre do etanol não causa danos ambientais, é o “vazamento”, ou seja, a devastação indireta por meio da mudança geográfica de atividades produtivas para regiões de fronteira agrícola. A tragédia da soja na Amazônia Legal, vale a pena lembrar, não se deu principalmente pela sua implantação direta na floresta amazônica – embora isso também tenha ocorrido –, e sim pelo plantio de grãos em áreas antes ocupadas por pastagens ou lavouras de subsistência, implantadas, por sua vez, no rastro da extração criminosa da madeira.

 

Os pesquisadores Carlos Eduardo Frickman Young e Priscilla Geha Steffen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), advertem que, se o aumento das áreas de cultivo para a produção do etanol resultar em aceleração do desmatamento, isso irá agravar o aquecimento global, ao invés de reduzi-lo. “É muito comum ouvir dos defensores do etanol e do biodiesel que há muitas áreas já desmatadas que podem ser utilizadas para esses combustíveis – escrevem --, mas não existe nenhum plano para impedir o ‘vazamento’ do desmatamento na fronteira agrícola, nem mesmo menção aos possíveis efeitos indiretos do crescimento do preço da terra.” Young e Steffen advertem para o quadro de vulnerabilidade que se gera na economia brasileira diante da falta de uma resposta satisfatória para essas questões. “Se for comprovado que a produção do biocombustível está associada ao desmatamento (e também à redução da biodiversidade), é muito provável que a esperada explosão da demanda externa não se verifique, e que o setor entre em crise.”[11]

 

Esse fantasma foi admitido, implicitamente, pela ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, quando afirmou que “a Amazônia deve ser preservada para preservar o próprio etanol”.[12] A ministra protagonizou, em setembro, uma queda-de-braço com seu colega Reinhold Stephanes, ministro da Agricultura. Stephanes anunciou que o zoneamento agrícola da cana-de-açúcar, previsto para 2008, deverá permitir e até incentivar o plantio em áreas já degradadas ou devastadas da Amazônia. Marina protestou e ganhou o primeiro embate. Segundo o presidente Lula, essa cultura será proibida na região amazônica.

 

Isso não anula uma situação de fato: os canaviais já fazem parte do cenário econômico da Amazônia. Em reportagem recente, o jornal O Estado de S. Paulo registra a presença, em quase todos os estados da Amazônia Legal, de instalações para a produção de álcool, algumas delas já em funcionamento, no Pará. O texto aponta, como prova que a Amazônia tem condições de produzir cana, a Agropecuária Jayoro, no município do Presidente Figueiredo (AM), a 100 quilômetros de Manaus, com 900 trabalhadores e uma área de 59 mil hectadores, dos quais 4 mil estão cobertos com oito variedades de cana adaptadas às condições locais. A empresa, que fornece açúcar para a Coca-Cola, planeja expandir os canaviais para produzir etanol, mas garante que não vai derrubar árvores e sim utilizar o espaço já desmatado nas décadas anteriores.

 

Mesmo sem a eliminação de árvores, a investida canavieira está provocando problemas ambientais em escala suficiente para gerar reações de resistência em moradores de diversos lugares do país. Em Ribeirão Preto, a Associação Pau Brasil organiza todos os anos manifestações populares contra as queimadas – um dos costumes mais primitivos da monocultura canavieira. As queimadas, além de matarem os animais silvestres que se abrigam nos canaviais, poluem terrivelmente a atmosfera, provocando doenças e afetando a qualidade de vida da população nas áreas próximas. Em outubro deste ano, uma pesquisa de Willian César Paterlini, do Instituto de Química da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), comprovou a influência das partículas emitidas pela queima da cana-de-açúcar no aumento dos casos de asma e hipertensão em Araraquara, uma cidade cercada por canaviais.[13]

 

A queima da palha da cana é indispensável nos casos em que o corte é manual, mas uma série de estudos mostra que a mecanização das colheitas é insuficiente para convencer os proprietários a abolirem a queimada, uma vez que essa prática aumenta a produtividade da safra. O engenheiro de produção Francisco Alves, professor na Universidade Federal de São Carlos, informa que, na região de Ribeirão Preto, “60% dos canaviais com colheita mecânica recorrem à queimada”. Segundo ele, “só nas imediações das cidades, da rede elétrica e das estradas é que o corte se faz sem o uso do fogo”. Em São Paulo, leis estaduais impuseram uma série de restrições a essa prática. Nos demais estados, inclusive no Centro-Oeste, toda a colheita mecânica utiliza a queimada.

 

Outro tópico controvertido do etanol diz respeito a um dos malefícios mais notórios das usinas – o vinhoto (também chamado de vinhaça), líquido feio e mal-cheiroso, altamente poluente, que resta como subproduto da destilação da cana-de-açúcar. Para cada litro de álcool, são produzidos cerca de 12 litros de vinhoto. Por muito tempo, esse resíduo foi jogado nos rios e nos córregos, destruindo a maior parte da sua flora e fauna. A situação mudou na década de 70, ao se descobrir nele um excelente fertilizante, desde então usado nos próprios canaviais. Mas o vinhoto, conduzido por dutos aos enormes tanques onde é armazenado, deve ser submetido a cuidados extremos – o menor acidente pode causar uma contaminação com sérias conseqüências para os cursos de água. Há ainda um limite para a sua absorção pela lavoura de cana, como lembra o engenheiro Francisco Alves. “Os excessos do vinhoto penetram na terra, afetando o lençol freático, ou são levados pela chuva até rede hidrográfica”, explica. “Em grande quantidade, trazem um risco ainda mais grave, pois os canaviais se concentram na zona onde se forma o Aqüífero Guarani, a bacia que abastece todo o Cone Sul.”

 

Foram os riscos do vinhoto que acenderam o sinal de alerta quando, em 2005, o governador do Mato Grosso do Sul, Zeca do PT, apresentou à Assembléia Legislativa um projeto para modificar a lei estadual que proíbe a instalação de usinas de álcool no Pantanal. A justificativa era de que seria a única opção para o desenvolvimento dos municípios daquela região mato-grossense. A resposta da sociedade civil foi uma vigorosa mobilização que, sob o lema “Pantanal sem Usinas de Álcool”, culminou com a rejeição da proposta pela maioria dos deputados estaduais. Uma nota trágica marcou a campanha vitoriosa – o suicídio do ambientalista Francisco Anselmo de Barros, que se incendiou em protesto contra o que considerava um atentado ao meio ambiente. Realmente, era só o que faltava: vinhoto no Pantanal!

 

A polêmica em torno do etanol deve se intensificar no próximo ano, quando se discutirá o projeto do governo federal de zoneamento das regiões produtores. As entidades ambientalistas têm se empenhado em garantir que a produção de biocombustíveis ocorra dentro de critérios comprováveis de sustentabilidade. As principais ONGs do setor juntaram forças em torno da Iniciativa Brasileira para a Verificação da Atividade Agropecuária. Mas esse é um desafio difícil, diante da falta de controle das autoridades sobre a situação no meio rural, da precariedade dos organismos de defesa ambiental, como o Ibama, e da enorme influência do agronegócio, sobretudo nas esferas estaduais. “É muito difícil aplicar qualquer regra aos proprietários rurais”, constata Menezes, da Amigos da Terra. “Eles estão convencidos de que podem fazer o que bem entendem dentro do seu território.” As discussões sobre o zoneamento da cana-de-açúcar também representam uma boa chance de definir, afinal, as “áreas degradadas” em nome das quais se justifica a expansão indiscriminada dos canaviais. Uma pergunta se impõe, acima de qualquer consideração técnica: se o país abriga a imensidão de terras improdutivas que o agronegócio do etanol afirma existir, por que elas ainda não foram distribuídas na reforma agrária?

 

[1] “Fiscalização encontra mil trabalhadores em condições degradantes no Pará”, 2 de julho de 2007. Disponível em http://www1.folha.uol.br/folha/brasil/ult96u308917.shtml

 

[2] www.portalunica.com.br

 

[3] “Etanol do Brasil pode substituir 5% da gasolina até 2025, diz governo”. BBCBrasil.com, 22/3/2007. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/03.

 

[4] “Risco de biocombustíveis para alimentação é tema de relatórios internacionais”, Agência Brasil, 29/10/2007. Disponível em http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/10/25/materia-10.25.3162862236

 

[5] “Marcos Jank alerta para ‘inverdadades’ sobre a expansão da cana”, ProCana.com, 6/8/2007.

 

[6] “Demand for biofuels is driving the destruction of Brazil’s cerrado”, 28 August 2007, www.newsmongabay.com

 

[7] “A queimada da cana e seu impacto socioambiental”, Manoel Eduardo Tavares Ferreira, 22/9/2006, Adital – Agência de Informação Frei Tito para a América Latina.

 

[8] Cit. Carlos Tautz, “A corrida estrangeira pelo álcool brasileiro”, 19/6/2007, em www.outraglobalizacao.blogspot.com

 

[9] “Etanol: o desafio do combustível verde”, Francisco Luiz Noel, in Problemas Brasileiros, nº 382, julho/agosto 2007, pgs. 3/9.

 

[10] “Boom do álcool dobra valor de terra e usina”, Folha de S.Paulo, 18/3/2007.

 

[11] “Conseqüências econômicas das mudanças climáticas”, Carlos Eduardo Frickman Young e Priscilla Geha Steffen, no site ComCiencia, da SBPC/Labjor. Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=22&id=236

 

[12] “’Amazônia terá teste de fogo em 2008’”, Folha de S.Paulo, 24/10/2007, Pg.A24.

 

[13] “Conseqüências indesejáveis da queima da cana-de-açúcar”, 30/10/2007, Agência Fapesp.