Direitos Humanos: Só parte da verdade
Familiares de desaparecidos durante a ditadura militar acusam a Universidade de Campinas de irresponsabilidade na identificação de mais de mil ossadas encontradas no Cemitério de Perus, em São Paulo
Por Evanize Sydow e Marilda Ferri
Meio metro de largura, 3 metros de profundidade e mais de 35 metros de extensão. Essas são as medidas do buraco para onde foram os restos mortais de Flávio Carvalho Molina, morto político no início dos anos 70. O sofrimento da família Molina já dura mais de 20 anos. Em 1980, os pais descobriram que os ossos do filho estavam em uma vala clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo, onde foram depositadas cerca de 1.500 ossadas humanas em 1975. Inaugurado em quatro anos antes, o cemitério pertence à Prefeitura paulista e se manteve a serviço da repressão durante a ditadura militar.
A reabertura da vala clandestina só aconteceu em 4 de setembro de 1990, quando o repórter Caco Barcelos fazia um estudo sobre a violência policial. As investigações, que resultaram no livro Rota 66, revelaram que o destino das vítimas da polícia era o mesmo dos mortos por motivos políticos.
Barcelos descobriu que nos documentos do IML, ao lado de alguns nomes, aparecia registrada a letra "T", significando que se tratava de um terrorista - como os militares consideravam os oponentes ao regime. A letra era o diferencial entre a vítima comum e a política. Mas o caminho era o mesmo: ocultamento de cadáver.
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Na época, a prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, determinou uma completa apuração do caso. Foi criada uma comissão para decidir o que fazer com as ossadas, e o Governo do Estado e entidades ligadas aos direitos humanos foram convocados para discutir o assunto.
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Assim, três meses depois, os ossos foram trasladados para a Universidade de Campinas (Unicamp) em três caminhões lotados. As ossadas estavam selecionadas, limpas e identificadas com uma chapa de metal numerada. Um convênio entre a universidade, o Governo do Estado e a Prefeitura garantiria os recursos para o trabalho de identificação, que ficou sob responsabilidade do legista Fortunato Antonio Badan Palhares, chefe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp.
O trabalho da Unicamp evoluiu até 1993. Depois disso, não houve avanços e a situação das ossadas de Perus tornou-se vergonhosa nos últimos anos. Até o início do ano 2000, a cena que se via na sala do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, destinada a guardar os ossos, era patética. Amontoados por toda a sala de necrópsia, os sacos plásticos contendo as ossadas estavam em estado deplorável, alguns abertos e em meio ao mofo, pó e a baratas mortas.
A história do trabalho de identificação de Flávio Carvalho Molina é um exemplo da falta de respeito da Secretaria de Segurança Pública, que acompanhou as perícias em Campinas, e da Unicamp em relação às famílias de mortos políticos que esperavam identificação no Departamento de Medicina Legal da universidade.
Irregularidades- Com a situação em que estavam as ossadas na universidade, os familiares exigiram que Badan Palhares fosse afastado do caso. Ele foi substituído por José Eduardo Bueno Zappa, em 31 de outubro de 1996. Durante os seis meses em que esteve à frente do "Projeto Perus", também não houve avanços. Em abril do ano seguinte, o legista entregou à reitoria da Unicamp um relatório que encerrava as análises nas ossadas de Perus.
O documento, no entanto, não foi aprovado pelo Conselho do Departamento de Medicina Legal da universidade, que apontou diversas falhas, como o fato de o relator não explicar a drástica redução da equipe envolvida no projeto, que inicia com 50 integrantes e termina com apenas quatro; e estranhamente, não haver referência a qualquer relatório anterior, que, a princípio, deveria ter sido encaminhado pelo ex-coordenador do projeto, Badan Palhares.
Nesse relatório, Zappa informa que duas ossadas, nº 240 e 57, foram encaminhadas à Universidade Federal de Minas Gerais para serem feitos exames de DNA. Sem especificar de quem é cada ossada suspeita, o perito diz que uma pode pertencer a Flávio Carvalho Molina e outra a Dimas Antônio Casemiro. Além dessas, foram enviadas à UFMG três ossadas tiradas de cada uma das sepulturas onde estavam Hiroaki Torigoe e Luís José da Cunha, ambos desaparecidos políticos. Outro dado inexistente no relatório é a data em que foi enviado o material para a equipe de Minas Gerais. Segundo Gilberto Molina, irmão de Flávio, em 1995 Palhares já havia mandado os ossos para a UFMG sem avisar a família e sem colher o sangue dos familiares, que serve de parâmetro para o exame de DNA. Só depois o legista comunicou a possibilidade de identificar pelo DNA e então pediu amostras de sangue. Enquanto o resultado de um exame como esse costuma demorar cerca de três meses, o de Flávio só ficou pronto dois anos depois.
A análise, no entanto, voltou a decepcionar a família Molina: as três vértebras e uma costela enviadas não pertenciam a Flávio e não correspondiam entre si. Foram mandadas amostras de ossadas diferentes e nenhuma delas pertencente a Molina, o que impossibilitou a identificação.
Um aspecto que se destaca nesta questão é que as ossadas suspeitas de serem de Flávio e Dimas, segundo o relatório de Zappa, pertenciam aos grupos I e II, que, divididos pelo próprio legista, eram ossadas com crânio, o que aumentava muito a chance de identificação. Mas os crânios dessas duas ossadas não foram enviados à UFMG. Num artigo escrito logo depois do resultado final da UFMG, Gilberto Molina questiona: "Será que Badan Palhares montou um esqueleto a partir de quatro outros? Se isso for verdade, falhou a Unicamp num assunto que deveria dominar. Se for mentira, falhou a UFMG, que não consegue extrair DNA de ossos".
De bico calado
José Eduardo Bueno Zappa entregou o relatório que encerrava as análises nas ossadas de Perus um mês antes da chegada do relatório final de DNA nos ossos que seriam de Flávio. Depois disso, o legista se afastou da Unicamp, em 1997, e se restringe a dizer que tudo o que tinha para falar já o fez no relatório. Zappa continuou trabalhando com Badan Palhares em seu laboratório particular. Palhares não foi encontrado para falar do assunto.
Ainda quando as ossadas estavam na Unicamp, o médico Nelson Massini, que trabalhou durante 20 anos na Universidade, antecedeu Badan Palhares na chefia do Departamento de Medicina Legal e tornou-se famoso pela atuação em casos como o de Carlos Lamarca, Paulo César Farias e Chico Mendes, informou que o abandono a que foram submetidos os ossos é uma irresponsabilidade. "Isso prejudica demais a identificação porque, com o tempo, vão sendo criados fungos e só aumenta o prejuízo e a dificuldade científica de conseguir resolver."
Desde setembro de 2000, o caso está sob os cuidados do Ministério Público Federal de São Paulo e as ossadas foram transferidas, em maio de 2001, da Unicamp para o Cemitério do Araçá, na capital paulista.
Atualmente, as perícias estão a cargo do legista Daniel Muñoz. A família de Flávio não espera de braços cruzados a punição da Unicamp. Gilberto conta que, há quase dez anos, estão movendo uma ação contra o Estado, pedindo a identificação e uma indenização e responsabilizando a União pelo assassinato de Flávio e por ocultar seu cadáver.
Processo parado
A descoberta da vala clandestina de Perus, em São Paulo, reacendeu a esperança de identificação de desaparecidos políticos que tiveram seus corpos enterrados em outros Estados.
No cemitério de Xambioá, no norte do Tocantins, por exemplo, já foram encontradas 13 ossadas de pessoas possivelmente executadas pelo Exército entre 1972 e 1975. Membro da Comissão de Direitos Humanos, o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) é quem está coordenando o trabalho de resgate das ossadas.
Para Greenhalgh, que representa as famílias dos desaparecidos num processo parado no Superior Tribunal de Justiça, "é um dever do governo dizer quais foram os últimos momentos de vida e onde os corpos estão enterrados, para traslado com sepultura cristã". Em agosto do ano passado, também começaram a ser feitas escavações em Nova Aurora (PR).