Somos agora contemporâneos, não de uma época
de mudanças, mas de uma mudança de época.
A última vez que isso ocorreu foi na passagem do período
medieval para o moderno, quando o paradigma cultural deslocou-se
do céu (teocentrismo) para centrar-se na Terra (antropocentrismo).
Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram uma hedionda
resposta à seqüência de violações
aos direitos humanos praticados pela política estadunidense
ao longo de sua história. A contradição
entre o discurso democrático e o apoio a ditaduras
latino-americanas e a governos autocráticos em países
islâmicos atingiu o seu paroxismo.
GLOBALIZAÇÃO
E DIREITOS HUMANOS
Frei
Betto*
Os atentados terroristas a Nova York e Washington, em 11 de
setembro de 2001, são a evidencia de que o atual modelo
de globalização afeta os esforços de
implantação mundial dos direitos humanos. Graças
ao avanço da tecnologia de comunicações
dos meios de transporte à Internet o
Planeta tornou-se, de fato, uma grande aldeia. Somos todos
vizinhos uns dos outros e podemos assistir, em tempo real,
ao que se passa no hemisfério oposto ao que habitamos.
No entanto, essa proximidade não nos tem tornado mais
solidários e amigos. À luz da crescente mercantilização
das relações humanas, quase tudo é encarado
em termos de lucro e benefício. Não importa
que guerras fratricidas ameacem a existência de nações
africanas. Os países metropolitanos continuarão
fabricando e exportando armas que a África não
produz e permanecerão insensíveis ao
genocídio se no palco das operações não
houver diamantes, petróleo ou qualquer outra riqueza
que justifique a intervenção das tropas globocolonizadas,
como ocorreu no Iraque e na Iugoslávia.
Avanços
necessários
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
precisa ser enriquecida, somando-se, aos direitos de liberdade
(proclamados pelas revoluções burguesas do século
18), os direitos de igualdade (exigidos pelas conquistas sociais
dos séculos 19 e 20) e os direitos de solidariedade
(reconhecidos no século 20 a partir da Segunda Guerra).
Entre estes últimos, destacam-se o direito à
paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação,
ao ambiente natural ecologicamente equilibrado, à paridade
nas relações comerciais entre países
e à utilização do patrimônio comum
da humanidade.
Nos países subdesenvolvidos, as pessoas têm alguma
idéia do que seja liberdade, mas ainda nem sequer atingiram
a modernidade no que diz respeito à idéia de
igualdade. No Brasil, o último país a libertar
seus escravos na América Latina, após 320 anos
de escravidão que hoje perdura de modo oficioso,
atingindo cerca de 16 mil trabalhadores ainda é
parte de nossa cultura não reconhecer a humanidade
do outro. A identidade do brasileiro passa pelo ter mais e
não pelo ser mais. A propriedade é o fundamento
da cidadania. Aquele que se encontra destituído de
posses é tido também como desprovido de direitos,
o que favorece todo tipo de discriminação e
violência.
Nos países desenvolvidos, com freqüência
a idéia de liberdade confunde-se com a de privacidade,
legitimando o egoísmo hedonista e o consumismo opulento,
respaldada pela convicção de que são
"naturais" ou inelutáveis as desigualdades
entre povos, nações, etnias, classes e pessoas.
A reação do governo dos EUA ao atentado terrorista
demonstra como isso é arraigado na cultura política
que identifica democracia liberal com liberdade, a ponto de
o presidente Bush restaurar o principio maniqueísta
da luta entre o bem e o mal.
Aliás, o governo dos EUA não aprende. Parece
dotado de vocação belicista. Manipula o Conselho
de Segurança da ONU, do qual é membro permanente,
e arvora-se em polícia do mundo. Depois de invadir
o Iraque em nome das "liberdades democráticas"
do Kuwait, Saddam Hussein prossegue no poder e o Kuwait tão
repleto de petróleo quanto vazio de democracia. Em
seguida, as tropas americanas enfiaram os pés no atoleiro
da Somália, sem que nenhuma mudança significativa
ocorresse naquela nação tão miserável.
Agora, apertam o bloqueio a Cuba o que contraria todos
os princípios do direito internacional e promovem
uma guerra para caçar Osama Bin Laden, cuja atividade
terrorista resulta do treinamento que recebeu da CIA por ocasião
da invasão russa ao Afeganistão.
Em poucos meses de governo, a administração
Bush destacou-se por sua atitude isolacionista e prepotente
diante dos demais povos do mundo, sobretudo a rasgar o Protocolo
de Kyoto, destinado à preservação ambiental;
ao retirar a delegação de seu país da
Conferencia de Durban, contra as formas de discriminação;
e ao se recusar a assinar o tratado contra armas biológicas.
História
de violações
Remonta a 1831 o início das agressões dos EUA
à América Latina e ao Caribe, quando os marines
invadiram as Ilhas Malvinas que, de direito, pertencem
à Argentina e destruíram Puerto Soledad.
Dois anos depois, a marinha de Tio Sam ajudou os súditos
da coroa britânica a se apoderarem militarmente daquela
ilha, que eles chamam de Falkland. Os marines, que cantam
orgulhosos em seu hino "somos os primeiros a entrar em
combate", foram criados em 1775, um ano antes da independência
dos EUA.
Em 1846, os EUA decidiram apoderar-se de parte do território
mexicano, o atual Estado do Texas. A batalha levou as tropas
invasoras a ocuparem a Cidade do México, em 24 de setembro
de 1847. No ano seguinte, a Casa Branca impôs ao seu
vizinho abaixo do rio Grande o Tratado de Guadalupe-Hidalgo,
pelo qual a nação mexicana entregou aos invasores
mais da metade de seu território: Texas, Novo México,
Arizona e Califórnia. A moda pegou. Em 1852, tropas
dos EUA desembarcaram em Buenos Aires. Em 1853, o pirata ianque
William Walker tentou se apropriar de mais uma parcela do
México, o Estado de Sonora, rico em ouro, mas foi repelido
pelo povo em armas. Inconsolável, Walker invadiu a
Nicarágua em 1855 e, no ano seguinte, autoproclamou-se
"Presidente de toda a América Central", o
que, no mínimo, seria cômico se não fosse
ridículo. Mas era sério e ele foi derrotado.
Convencidos de que esta parte do planeta lhes pertencia, em
1856 Inglaterra e EUA firmaram o Tratado de Hay-Clayton-Bulwer,
pelo qual se reservavam o direito de abrir canais interoceânicos
na América Central, indiferentes à opinião
dos países da área. Começou a campanha
do Panamá, que durou até 1860. Entre 1895 e
1898, tropas norte-americanas intervieram em Cuba. Em 1898,
fuzileiros navais bombardearam San Juan de Porto Rico e, desde
então, Porto Rico foi anexado aos EUA, perdendo sua
soberania. No mesmo ano, a Casa Branca, intervindo na luta
dos cubanos por sua independência da Espanha, impôs
à Cuba, durante quatro anos, um governo militar encabeçado
pelo general Leonard Wood.
Em 1903, mediante o Tratado Hay-Buneau-Varilla, a nação
do Norte apropriou-se de uma faixa de 8 km de cada lado na
região em que se construiu o Canal de Panamá,
entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Em 1905,
a República Dominicana foi invadida pelos marines,
a pretexto de desajuste financeiro naquele país. No
ano seguinte, Cuba sofreu uma segunda intervenção
militar, comandada pelo general Charles Magoon, e que durou
três anos. Até hoje, tropas dos EUA ocupam Guantánamo,
um parte do território cubano. Em 1909 foi a vez da
Nicarágua sofrer intervenção. Um ano
depois, as tropas invasoras obrigaram o presidente José
Santos Zelaya a abandonar o país. Em 1911, a República
Dominicana foi militarmente ocupada até 1914. Naquele
mesmo ano, os marines desembarcaram na Nicarágua, onde
permaneceram até 1924.
Cuba e Honduras sofreram mais uma intervenção
dos EUA em 1912. Nova ocupação de Cuba ocorreu
em 1917, e se prolongou por dois anos, sem que ainda houvesse
sequer o pretexto do comunismo. E se repetiu em 1922. Em 1924,
Honduras sofreu sua quarta intervenção e, no
ano seguinte, a quinta. Em 1926, os marines invadiram de novo
a Nicarágua. E de 1915 a 1934, ocuparam a Haiti.
Em 1947, por um acordo com os militares nativos, os EUA derrubaram,
na Venezuela, o presidente Rómulo Gallegos, como castigo
por ter aumentado o preço do petróleo exportado.
Em 1954, utilizando aviões de bombardeiro e mercenários,
os paladinos da liberdade puseram fim, na Guatemala, ao governo
democrático de Jacobo Arbenz. Em 1961, ocorreu a fracassada
invasão de Playa Girón, em Cuba. Em 1964, na
Panamá, soldados dos EUA mataram 20 estudantes, ao
reprimirem a manifestação em que os jovens queriam
trocar, na zona do canal, a bandeira estrelada pela bandeira
de seu país! No mesmo ano, a CIA participou do golpe
militar que derrubou o governo João Goulart, no Brasil.
Em 1965, num acinte ao direito internacional, o Congresso
dos EUA reconheceu unilateralmente o "direito" de
os EUA intervirem militarmente em qualquer país do
Continente. No mesmo ano, para livrar a República Dominicana
"do perigo comunista", os marines ocuparam o país,
com a ajuda de tropas brasileiras, e impediram a posse de
Juan Bosch.
Em 1973, a CIA arquitetou o plano que, em 11 de setembro,
resultou no assassinato do presidente Salvador Allende, do
Chile, e levou o general Augusto Pinochet ao poder. Em 25
de outubro de 1983, tropas da 82ª divisão aerotransportada
invadiram Granada e assassinaram o presidente Maurice Bishop.
Em 1984, para reforçar a contra-revolução
nicaragüense, 11 mil soldados dos EUA se espalharam por
Honduras. Entre 1988 e 1989, pilotos americanos e a Guarda
Nacional de Kentucky participaram de bombardeios à
população civil do interior da Guatemala, sob
pretexto de combater guerrilhas. Em El Salvador, inúmeros
oficiais dos EUA assessoraram as tropas do governo contra
os combatentes da FMLN. Em 20 de dezembro de 1989, 25 mil
soldados dos EUA invadiram o Panamá, derrubaram e aprisionaram
o presidente Manuel Noriega, sob pretexto de tráfico
de droga, e impuseram no poder o presidente Guillermo Endara.
Mais de mil panamenhos foram mortos durante a ocupação.
E entre 1982 e 1990, o governo dos EUA patrocinou uma guerra
de agressão à Nicarágua, financiando
e treinando mercenários e mantendo o bloqueio econômico.
Por onde andaram neste Continente, as tropas americanas só
deixaram miséria, desigualdade, corrupção
e morte. Mas faz sentido a Estátua da Liberdade à
porta principal dos EUA. Assim, estamos todos avisados de
que ela delimita a esfera da liberdade. A todos nós,
que não somos norte-americanos, resta-nos a liberdade
de jamais contrariar a liberdade de quem restringe ou suprime
a nossa.
O
ovo de Colombo
As manifestações anti-G-8 em Gênova, em
julho de 2001, revelam que, como diria Machado de Assis, mudamos
nós e mudou o Natal. A queda do Muro de Berlim, em
1989, deixou no ar a impressão de que a esquerda fora
soterrada junto. O planeta seria, definitivamente, governado
pelas leis do sistema capitalista. A ponto de Fukuyama, guru
do neoliberalismo, declarar que "a história acabou".
De fato, o fim da bipolarização do mundo suscitou
uma onda de desesperança e conformismo, como se as
ideologias libertárias fossem coisas do passado, agora
relegadas ao museu da filosofia. A ênfase na vida privada,
reduzindo a história, como ciência, à
pesquisa das folhas e dos galhos, sem dimensionar a árvore
e, muito menos a floresta, deixou a impressão de que
o esvaziamento das utopias abria caminho à cultura
da dessolidariedade. Cada um por si
e Deus por aqueles
que pagarem o pedágio a quem anuncia que Jesus é
o caminho.
Sem alarde, somos agora contemporâneos, não de
um época de mudanças, mas de uma mudança
de época. A última vez que isso ocorreu foi
na passagem do período medieval para o moderno, quando
o paradigma cultural deslocou-se do céu (teocentrismo)
para centrar-se na Terra (antropocentrismo).
Como só os artistas intuem a profundidade do presente,
contemporâneos de sua própria época, quem
melhor expressou a mudança ocorrida entre os séculos
15 e 17 foi Michelangelo, no afresco que coroa o teto da Capela
Sistina: Javé, envolto em mantos e barbudo, estende
o dedo ao dedo de Adão, nu, atraído magneticamente
em direção à Terra, como que expressando
a importância de não se perder o ponto de contato
entre criatura e Criador. pós-modernidade, a ruptura
não é entre o transcendente e o imanente, o
sobrenatural e o natural, o divino e o humano. É entre
o público e o privado, o social e o individual, o ético
e o estético. A privatização não
é apenas um fenômeno econômico. É
também metafísico. Privatizam-se valores, idéias,
projetos, e até manifestações religiosas
que servem de terapia a corações angustiados,
desde que não exijam amor ao próximo e, muito
menos, solidariedade aos mais pobres.
É
o ovo de Colombo: não se consegue manter de pé
a promessa de que, agora, o livre mercado trará a todos
a tão sonhada emancipação humana. Mas
que importa que fique deitado, desde que cada um "fique
na sua"?
A despolitização ocorrida no mundo, transformando
Che Guevara num ícone inofensivo a provocar suspiros
em corações femininos, foi reforçada
pela arma mais poderosa do neoliberalismo: a desistorização
do tempo. Extrai-se do tempo, pessoal e social, o seu caráter
histórico, e temos uma sociedade entregue a projetos
e desejos encerrados em seu ciclo biológico, e não
mais biográfico. Narciso e Apolo expulsam Prometeu
do proscênio. A era imagética, que possibilita
a fusão da temporalidade na instantaneidade, resgata
o tempo cíclico dos gregos.
Daí a dificuldade de as novas gerações
estabelecerem projetos a longo prazo. Os filhos tardam cada
dia mais a sair de casa e a ter idéia do que farão
de suas vidas. Educados pela TV, não apreendem a sucessão
entre passado, presente e futuro. O mesmo monitor que exibe
o enterro de Ayrton Senna, mostra-o no podium celebrando a
vitória.
Tudo parece reduzido ao "aqui e agora". Para que
se esforçar, lutar, sacrificar-se, se a vida é
um mero jogo de oportunidades, e a felicidade não passa
da soma de prazeres? A historicidade do tempo alinhavou os
projetos das gerações passadas. Na vida conjugal,
por exemplo, muitos casais, como nossos avós, não
se separaram porque tinha na família um projeto. E
quando se tem projeto, tanto na vida conjugal quanto profissional,
não se sucumbe ao primeiro revés. Há
consciência histórica e, portanto, disposição
para enfrentar momentos de dificuldades e crises.
A desistorização do tempo imposta pelo neoliberalismo
tirou o varal no qual dependurávamos os nossos valores.
Temos valores, recebidos da educação na família,
na escola e na religião, mas já não sabemos
onde e como dependurá-los, pois arrancaram de nosso
cenário o varal do tempo como história. Por
isso tanto faz, para muitos jovens, ser progressista hoje
e reacionário amanhã, dependendo das vantagens
das circunstâncias. "Fica-se", sem assumir.
O político e o social são dimensões intrínsecas
à vida de todos nós, mas as consciências
despolitizadas, reduzidas à vida privada, julgam poder
manter distância delas, sem perceber que aqueles que
têm nojo da política são governados por
quem não tem. E se a maioria cuspir de lado ao ouvir
falar no assunto, será o fim da democracia.
Três pilares de nossa cultura são tributários
da cultura hebraica marcada pelo caráter histórico
do tempo: Jesus, Marx e Freud. Sem historicidade não
se pode apreender a profundidade da mensagem de nenhum dos
três. Para Jesus, o arco que se estende do Paraíso
primitivo ao Paraíso escatológico o Reino
de Deus como culminância da história. Para Marx,
a sucessão histórica dos modos de produção.
Para Freud, o resgate da história do inconsciente como
recurso da sanidade mental.
Tudo isso o neoliberalismo tentou derrubar com o Muro de Berlim,
acreditando que, enfim, poria em pé o ovo de Colombo.
Como se quisesse transformar todos nós em meros robôs
da ânsia consumista. Um mundo sem cidadãos, só
consumidores! No qual as opções se restringem
à meia dúzia de marcas de cerveja ou ao local
de férias no próximo verão. E quem não
dispõe de poder aquisitivo, que se exclua do processo
social, barrado pelo anjo à porta dos novos paraísos:
os shopping-centers.
"Consumo,
logo existo", é o novo adágio ontológico.
E se a vida é um divertido jogo de oportunidades, para
que falar em sentido, subjetividade, espiritualidade? A estética
sobrepõe à ética e a filosofia perde-se
no labirinto da abstração da linguagem, indiferente
à pobreza como fenômeno coletivo.
Mercantilizado o mundo e submetido à unipolaridade,
julgavam os senhores do neoliberalismo que a imposição
do pensamento único e do modelo econômico igualmente
único, embrulhados para presente sob o elegante selo
de globalização, fariam com que todos nós
nos sentíssemos felizes habitantes da aldeia global.
Não esperavam que na horda de consumidores sobrevivesse
a consciência cidadã e, com ela, as exigências
éticas de justiça e dignidade.
Por mais que o corpo se cubra de glamour e a ciência
nos permita morrer jovens e esbeltos, sem uma celulite, é
no coração humano que se guarda a felicidade.
A "gula de Deus" extrapola o poder de cooptação
do mercado e o amor, ainda que reduzido ao simulacro de pornos,
tem ânsia de eros e sonha com o ágape. A solidariedade
sempre renasce no espírito humano que não sei
deixou abafar pela desesperança, nem cegar os olhos
pela indiferença à dor alheia.
Manifestações
Em menos de uma década, deixou-se de falar em marginalização
para introduzir exclusão. Em torno da aldeia, forma-se
o imenso cinturão de excluídos, 4 bilhões
de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. Dentro da
aldeia, a exclusão intelectual, produzida pela avassaladora
indústria de entretenimento, não é suficiente
para saciar os que têm fome de cultura. O espírito
humano quer mais do que desejam os olhos, a boca e a epiderme.
Se o corpo tem fome de pão, saciável, o espírito
tem de beleza, infindável.
Desnudado o engodo globocolonizador, com a ruína dos
castelos de areia de suas receitas monetaristas (vide Argentina),
multiplicam-se mobilizações solidárias
por todo o mundo. Com uma vantagem em relação
ao passado. Em tempos idos, muitos preferiam não participar,
para evitar o risco de cairem prisioneiros da camisa-de-força
dos partidos e das ideologias. Hoje, é a ética
da solidariedade que promove, nas ruas da aldeia global, o
encontro daqueles que acreditam que "um outro mundo é
possível". Em Gênova, o cardeal Tettamanzi
e José Bové, freiras e comunistas, "Papa
boys" e punks, dão-se as mãos frente às
baricadas que protegem o Palácio Ducal, sede do G-8.
Os protestos começaram na reunião do G-7, em
1998, em Birmingham, prosseguiram no ano seguinte em Colônia
(G-7), Haia (conferência mundial pela Paz/ONU), Mônaco
(G-8), e Seattle (reunião da OMC). Continuaram em 2000:
Davos (Fórum Econômico Social), Bangkok (assembléia
da UNCTAD), Washington (reunião do FMI e Banco Mundial),
Genebra (conferência sobre Pobreza/ONU), Okinawa (G-8),
e Melbourne (Fórum Econômico Mundial).
Neste ano, Davos (Fórum Econômico Mundial), Porto
Alegre (Fórum Social Mundial), Quebéc (ALCA),
Barcelona (reunião FMI e Banco Mundial), Göteborg
(conferência da União Européia) e, agora,
Gênova. Em novembro, Qatar (conferência da OMC)
e, em janeiro de 2002, Segundo Fórum Social Mundial,
em Porto Alegre.
São as ruas da aldeia global, repletas de manifestantes
da globalização da solidariedade. Pode ser que
nada mude nos próximos anos, exceto a gravidade da
questão social. Mas será cada vez mais difícil
aos chefes da aldeia convencer-nos de que o ovo está
de pé. E com certeza ele tem gosto de Páscoa,
de esperança de vida para todos os habitantes desta
Terra que Deus, ao criá-la, cuidou de não passar
escritura para ninguém em particular.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram uma hedionda
resposta à seqüência de violações
aos direitos humanos praticados pela política estadunidense
ao longo de sua história. A contradição
entre o discurso democrático e o apoio a ditaduras
latino-americanas e a governos autocráticos em países
islâmicos atingiu o seu paroxismo. Queira Deus que o
governo dos EUA tenha aprendido a lição de que
a paz é fruto da justiça, e não imposição
ou equilíbrio de forças. Findada a Guerra Fria
e, portanto, o conflito Leste-Oeste, resta agora reduzir drasticamente
a desigualdade entre o Norte e o Sul do mundo, de modo que
todos se sintam fraternizados no Pai Nosso porque, de fato,
comungam o pão santo.
*
Frei Betto, escritor, participa da Rede Social de Justiça
e Direitos Humanos e é outor, em parceria com Emir
Sader, de "ContraversõesCivilização
ou barbárie na virada do século" (Boitempo),
entre outros livros.
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