Se, para os internacionalistas, o Pós 1945 foi o marco
para uma nova era a da reconstrução de
direitos o Pós 2001 parece surgir também
como novo marco divisório na história da humanidade.
A Conferência de Durban, na África do Sul, encerrada
em 08 de setembro, já antecipava o alcance e o grau
do dissenso mundial na luta contra a discriminação
racial, xenofobia e intolerância, em uma ordem caracterizada
pelo choque de culturas, crenças, etnias, raças,
religiões
O Pós setembro de 2001 invocará
o maior desafio da "Era dos Direitos": avançar
no Estado de Direito Internacional ou retroceder ao Estado
da Natureza? Uma vez mais: como preservar a "Era dos
Direitos" em tempos de terror? Quais as perspectivas
para a justiça global?
PERSPECTIVAS
PARA UMA JUSTIÇA GLOBAL
Flavia
Piovesan*
O objetivo deste artigo é enfocar o legado do processo
civilizatório que levou à universalização
e à internacionalização de direitos,
bem como apontar aos dilemas e tensões contemporâneas
que alcançam esse processo, no contexto histórico
do pós 11 de setembro de 2001.
A
"Era dos Direitos"(1)
No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não
são um dado, mas um construído, uma invenção
humana, em constante processo de construção
e reconstrução(2).
Tendo em vista este olhar histórico, adota-se as lições
de Norberto Bobbio, que em seu livro "Era dos Direitos",
sustenta que "os direitos humanos nascem como direitos
naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos
particulares (quando cada Constituição incorpora
Declarações de Direito), para finalmente encontrarem
sua plena realização como direitos positivos
universais"(3).
É
em face do crescente processo de internacionalização
dos direitos humanos, que há de se compreender o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos.
O movimento de internacionalização dos direitos
humanos constitui um movimento extremamente recente na história,
surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às
atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Se
a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos,
o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.
É neste cenário que se desenha o esforço
de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma
e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea.
Fortalece-se a idéia de que a proteção
dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio
reservado do Estado, isto é, não deve se restringir
à competência nacional exclusiva ou à
jurisdição doméstica exclusiva, porque
revela tema de legítimo interesse internacional.
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela
qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um
problema de jurisdição doméstica, decorrência
de sua soberania.
Inspirada por estas concepções, surge, em 1945,
a Organização das Nações Unidas.
Em 1948 é aprovada a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, como um código de princípios
e valores universais a serem respeitados pelos Estados.
A Declaração de 1948 inova a gramática
dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção
contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade
e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque
a condição de pessoa é o requisito único
e exclusivo para a titularidade de direitos, sendo a dignidade
humana o fundamento dos direitos humanos. Indivisibilidade
porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis
e políticos é conjugado ao catálogo dos
direitos econômicos, sociais e culturais.
A partir da Declaração de 1948, começa
a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
mediante a adoção de inúmeros instrumentos
internacionais de proteção. A Declaração
de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa
a este campo do Direito, com ênfase na universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
O processo de universalização dos direitos humanos
permitiu a formação de um sistema internacional
de proteção destes direitos forma-se,
assim, o sistema normativo global de proteção
dos direitos humanos, no âmbito das Nações
Unidas. Este sistema é integrado por tratados internacionais
de proteção que refletem, sobretudo, a consciência
ética contemporânea compartilhada pelos Estados,
na medida em que invocam o consenso internacional acerca de
temas centrais aos direitos humanos. Neste sentido, cabe destacar
que, até junho de 2000, o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos contava com 144 Estados-partes; o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais contava com 142 Estados-partes; a Convenção
contra a Tortura contava com 119 Estados-partes; a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação
Racial contava com 155 Estados-partes; a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação
contra a Mulher contava com 165 Estados-partes e a
Convenção sobre os Direitos da Criança
apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes.
O elevado número de Estados-partes destes tratados
simboliza o grau de consenso internacional a respeito de temas
centrais voltados aos direitos humanos.
Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais
de proteção, que buscam internacionalizar os
direitos humanos nos planos regionais, particularmente na
Europa, América e Africa. Consolida-se, assim, a convivência
do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional,
por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano
de proteção aos direitos humanos.
Os sistemas global e regional não são dicotômicos,
mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios
da Declaração Universal, compõem o universo
instrumental de proteção dos direitos humanos,
no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas
de proteção de direitos humanos interagem em
benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar
o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam,
somando-se ao sistema nacional de proteção,
a fim de proporcionar a maior efetividade possível
na tutela e promoção de direitos fundamentais.
Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias
do Direito dos Direitos Humanos.
O sistema internacional de proteção dos direitos
humanos envolve quatro dimensões:
1
A celebração de um consenso internacional
sobre a necessidade de adotar parâmetros mínimos
de proteção dos direitos humanos;
2
A relação entre o gramática de
direitos e a gramática de deveres; ou seja, os direitos
internacionais impõem deveres jurídicos aos
Estados (prestações positivas ou negativas);
3
A criação de órgãos de
proteção (ex: Comitês, Comissões
e Relatorias da ONU, destacando-se, como exemplo, a atuação
do Comitê contra a Tortura; do Comitê sobre a
Eliminação da Discriminação Racial,
da Comissão de Direitos Humanos da ONU, das Relatorias
especiais temáticas Relatoria especial da ONU
para o tema da tortura; relatoria para o tema da execução
extra-judicial, sumária e arbitrária; relatoria
para o tema da violência contra a mulher; relatoria
para o tema da moradia; da pobreza extrema,...) e Cortes internacionais
(ex: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Tribunal Penal
Internacional,...)
4
A criação de mecanismos de monitoramento
voltados à implementação dos direitos
internacionalmente assegurados (ex: a sistemática dos
relatórios e das petições)
Estas dimensões são capazes de realçar
a dupla dimensão dos instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos, enquanto: a)
parâmetros protetivos mínimos a serem observados
pelos Estados e b) instância de proteção
dos direitos humanos, quando as instituições
nacionais se mostram falhas ou omissas.
Nesse sentido, a atuação do Centro de Justiça
Global, no que tange à litigância de casos perante
o sistema interamericano, ou, ainda, no que se refere à
submissão de denúncias de violação
de direitos humanos perante as Relatorias temáticas
da ONU, concretiza este duplo impacto dos instrumentos internacionais.
Objetiva-se, de um lado, a observância de parâmetros
protetivos mínimos e, ao mesmo tempo, busca-se impedir
retrocessos e arbitraridades e propiciar avanços no
regime de proteção dos direitos humanos no âmbito
interno brasileiro. Esta é a maior contribuição
que o uso do sistema internacional de proteção
pode oferecer: propiciar progressos e avanços internos
na proteção dos direitos humanos em um determinado
Estado.
A ação internacional tem auxiliado a publicidade
e visibilidade das violações de direitos humanos,
o que oferece o risco do constrangimento político e
moral ao Estado violador, permitindo avanços e progressos
na proteção dos direitos humanos. Vale dizer,
ao enfrentar a publicidade das violações de
direitos humanos, bem como as pressões internacionais,
o Estado é praticamente "compelido" a apresentar
justificativas a respeito de sua prática, o que tem
contribuído para transformar uma prática governamental
específica, no que se refere aos direitos humanos,
conferindo suporte ou estímulo para reformas internas.
Quando um Estado reconhece a legitimidade das intervenções
internacionais na questão dos direitos humanos e, em
resposta a pressões internacionais, altera sua prática
com relação à matéria, fica reconstituída
a relação entre Estado, cidadãos e atores
internacionais.
Por fim, indaga-se: considerando o processo de internacionalização
de direitos humanos e a busca civilizatória pela justiça
global, quais os dilemas e tensões contemporâneas
que alcançam esse processo, no contexto histórico
do pós 11 de setembro de 2001?
A
"Era dos Direitos" em tempos de terror:
perspectivas para a justiça global
Atônito e perplexo o mundo acompanhou as cenas de horrores
do último dia 11 de setembro de 2001. Se, para os internacionalistas,
o Pós 1945 foi o marco para uma nova era a da
reconstrução de direitos o Pós
2001 parece surgir também como novo marco divisório
na história da humanidade. A Conferência de Durban,
na África do Sul, encerrada em 08 de setembro, já
antecipava o alcance e o grau do dissenso mundial na luta
contra a discriminação racial, xenofobia e intolerância,
em uma ordem caracterizada pelo choque de culturas, crenças,
etnias, raças, religiões
Se o mundo da Guerra Fria refletia a bipolaridade de blocos,
o mundo Pós Guerra Fria, lembrava Samuel Huntington4
, refletiria o choque entre civilizações. Basta
mencionar os conflitos da década de 90 Bósnia,
Ruanda, Timor, Kosovo, dentre outros.
Neste cenário, como enfrentar o terror? Como preservar
a "Era dos Direitos" em tempos de terror"?
Como garantir liberdades e direitos em face do clamor público
por segurança máxima? Como reagir à retaliação
militar e bélica? Não seria combater o terror
com instrumentos do próprio terror? De que modo os
avanços civilizatórios da "Era dos Direitos"
(criados em reação à própria bárbarie
totalitária) podem contribuir para responder ao conflito
que acena à "1ª guerra do século XXI"?
É
compreensível que, neste momento, 94% da população
norte-americana como reação emocional
imediata aos ataques perpetrados por uma rede de poder difuso
e oculto demande uma resposta violenta, dura e agressiva,
na lógica da justiça retributiva.
Entretanto, a firmeza da resposta e a busca por justiça
devem se orientar pela lógica da racionalidade e não
da vingança. Decisões devem ser tomadas de forma
lúcida, madura e serena, pautadas pelos princípios
legados do processo civilizatório, sem aniquilar conquistas
históricas atinentes a garantias e direitos, de forma
a gerar também a cruel e injustificável morte
de mais civis inocentes.
Se, por um lado, são louváveis as demonstrações
de solidariedade no país e no mundo, por outro, absolutamente
preocupantes e perigosas são as manifestações
exacerbadas de um nacionalismo agora ainda mais fortalecido.
A restrição de direitos, a supressão
de garantias, as perseguições, as detenções
arbitrárias, a xenofobia e a intolerância com
o outro especialmente de origem árabe
enquanto respostas imediatas, poderão dilapidar e comprometer
o patrimônio histórico de direitos que a humanidade
construiu, no Pós-1945, em reação à
herança de sistemáticas violações
e atrocidades.
Na ordem internacional, os delineamentos de um "Estado
de Direito Internacional" faziam-se sentir. A internacionalização
de direitos (como acima analisado), o consenso na fixação
de parâmetros protetivos mínimos para a defesa
da dignidade e o recente esforço da comunidade internacional
pela criação de uma justiça internacional
como o Tribunal Penal Internacional justificavam
a esperança de um "Estado de Direito Internacional".
Isto é, não bastava apenas enunciar direitos,
mas protegê-los e garanti-los o que tem estimulado
a "justicialização do Direito Internacional",
conferindo-lhe maior efetividade, mediante poder sancionatório.
As últimas cinco décadas permitiram constatar
a crescente consolidação do Direito Internacional
dos Direitos Humanos como referencial ético conformador
e inspirador das ordens nacionais e internacional. Permitiram,
ainda, acreditar que a força do direito poderia prevalecer
em relação ao direito da força. Neste
sentido, destacam-se casos paradigmáticos que celebaram
a aplicação da jurisdição universal
para graves crimes atentatórios à ordem internacional,
como os casos Pinochet, Milosevic, Tribunais "ad hoc"
para Ruanda e Bósnia, Corte Internacional para o Camboja
e instituição do Tribunal Penal Internacional.
Por isto, o Pós setembro de 2001 invocará o
maior desafio da "Era dos Direitos": avançar
no Estado de Direito Internacional ou retroceder ao Estado
da Natureza? Uma vez mais: como preservar a "Era dos
Direitos" em tempos de terror? Quais as perspectivas
para a justiça global?
*
Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos Humanos
e Direito Constitucional, Procuradora do Estado, membro do
CLADEM/Brasil (Comitê Latino-americano e do Caribe para
a defesa dos Direitos da Mulher) e do Conselho Consultivo
da Rede Social de Justiça e Direotos Humanos.
1
Esta expressão é utilizada por Norberto Bobbio,
em sua obra Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho,
Rio de Janeiro, Campus, 1988. Também é adotada
por Louis Henkin, em seu "The Age of Rights", New
York, Columbia University Press, 1990.
2
Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto
Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A respeito, ver também
Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos:
Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das
Letras, São Paulo, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma
Ignacy Sachs: "Não se insistirá nunca o
bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos
é fruto de lutas, que os direitos são conquistados,
às vezes, com barricadas, em um processo histórico
cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e
as aspirações se articulam em reivindicações
e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como
direitos". (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos Humanos
e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998,
p.156).
4
Samuel Huntington, The clash of civilizations and the remaking
of the world order, New York, Touchstone, 1997.
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