Crianças e adolescentes de origem humilde e do sexo
masculino aparecem mortos na Grande São Luís,
no Maranhão. Desde 1991 são 19 vítimas.
Nove delas tiveram os órgãos genitais extirpados,
além de outras partes do corpo como olhos, língua
e dedos. O Centro de Defesa da Criança e Adolescente
de São Luis do Maranhão tenta esclarecer o que
há por trás da morte de 19 meninos da periferia.
Meninos
em perigo
Paulo
Pereira Lima
Revista
SEM FRONTEIRAS
Um dia depois da sua festinha de aniversário de 10
anos, Luizinho saiu para brincar num matagal perto de casa,
descalço, sem camisa e vestindo um calção
branco xadrez emprestado do irmão mais velho. Foi acompanhado
do amigo Hermógenes, companheiro de brincadeiras e
da mesma idade. Os dois adoravam caçar passarinho.
Era a tarde do dia 7 de agosto de 2000 na Vila Olímpica,
uma ocupação na periferia de São Luís
que virou cidade. A noite veio e, com ela, a preocupação
dos pais, que não sabiam onde os meninos tinham se
enfiado.
Com o passar dos dias, a preocupação virou angústia.
Os meses sem notícias dos garotos foram passando, e
um misto de indignação e desespero tomou conta
dos familiares. De desaparecidos a vítimas de um crime
que chocou a população maranhense, os corpos
de Luizinho e Hermógenes foram encontrados não
muito longe de casa, num lugar chamado Mata Grande, onde tinham
ido, simplesmente, brincar. Era a tarde do Dia de Finados.
Estavam deitados, sem roupa e de bruços. Um dos meninos
estava com um dos braços sobre o corpo do outro.
"Fiquei
muito desgostosa da vida. Estava mais morta do que viva. Meu
coração até hoje chora", recorda
Dona Rosaria Sousa Cordeiro, mãe de Luizinho e de outros
quatro filhos. Ela tem no colo o caçula, Carlos Henrique,
de 3 anos, olhos grandes, arregalados, como quem entende conversa
de adulto e, sobretudo, o olhar triste e as lágrimas
da mãe. Marcelo Wilson, de 7, brinca do lado de fora
da casa de pau-a-pique de dois cômodos. Parece feliz
da vida com seu brinquedo preferido: uma pequena bicicleta
marrom que vai aos empurrões. "Marcos André,
de 8, está na escola, e o mais velho tem 16 anos e
mora com a avó", ela diz.
"Ele
vivia dizendo que, quando crescesse, queria ser piloto de
avião e me levaria para dar um passeio", conta
Dona Rosaria, que trabalha como lavadeira para ajudar o marido,
José Raimundo, nas despesas da casa. Ela ganha 5 reais
por cada trouxa de roupa.
Mutilações
_ Luizinho, Hermógenes, Kleiton, Bernardo, Ivanildo,
Carlinhos... A lista é grande. São crianças
e adolescentes que, após dias, meses desaparecidos,
foram encontrados mortos. Em comum não apenas a origem
humilde, mas também o sexo masculino. Eram todos meninos,
entre 9 e 15 anos, que moravam em regiões próximas
na Grande São Luís _ área que, além
da capital, abrange os municípios de Paço do
Lumiar, São José de Ribamar e Raposa.
De 1991, quando surgiram os primeiros casos, até hoje,
foram 19 vítimas. O que chama a atenção
é que 9 meninos foram emasculados. Tiveram os órgãos
genitais extirpados. Por tabela, os demais crimes também
ficaram conhecidos como os dos "meninos emasculados".
Em alguns crimes, outras partes do corpo das vítimas
foram mutiladas. Nos corpos encontrados poucos dias após
o desaparecimento, por exemplo, foram identificados vestígios
de atentado violento ao pudor, além de extirpação
de olhos, língua e dedos. Quanto a Luizinho e Hermógenes,
devido ao estado de putrefação, não houve
como identificar se aconteceram esses tipos de violência.
Apesar de cada um apresentar suas particularidades, todos
os corpos passaram por tortura e foram achados em locais de
mata fechada e difícil acesso, onde existem muitos
tucunzeiros, palmeira típica da região. Na maioria
dos casos, o criminoso cobriu os corpos com palhas para evitar
que urubus ou outros predadores se aproximassem
Desde o começo, as famílias das vítimas
puderam contar com uma espécie de anjo da guarda nessa
luta por justiça. É o Centro de Defesa dos Direitos
da Criança do Adolescente Pe. Marcos Passerini, que
fez dos casos uma "bandeira de luta". Em dezembro
de 1997, o centro ajudou na formação do Comitê
pela Vida das Crianças e dos Adolescentes da Grande
São Luís, que reuniu diversas organizações
de bairro e de defesa dos direitos humanos, como também
os próprios familiares dos garotos assassinados.
Reação
"Procuramos partilhar o sofrimento das famílias
e canalizar a indignação para exigir providência
da Polícia e do poder público", conta Nelma
Pereira da Silva, coordenadora do Centro de Defesa. Entre
as atividades iniciais do comitê, algumas se destacam,
como as missas em memória dos meninos e a divulgação
de um dossiê sobre os casos, que foi enviado a várias
entidades de defesa dos direitos humanos nacionais e internacionais.
Segundo este trabalho elaborado com a ajuda de jornalistas
e advogados do CDMP (como é conhecido o Centro de Defesa
em São Luís), a maioria dos meninos exercia
algum tipo de trabalho informal (vendiam suquinho, bolo etc.)
ou estudavam. Moravam em ocupações ou mutirões
na periferia, onde nem a Prefeitura nem o Estado investem
em políticas públicas. São lugares onde
não existem saneamento básico, linhas telefônicas,
posto policial e de saúde, transporte coletivo. As
escolas são poucas e precárias; na que um dos
filhos de Dona Rosária estuda nem janela tem. De resto,
os pais possuem baixa escolaridade e pouca inserção
em qualquer forma de organização comunitária.
Muitos são desempregados e vivem de bicos para tirar
o sustento da família.
Nelma lamenta o fato de a experiência de mobilização
ter durado apenas pouco mais de um ano. Entre as causas do
fracasso, ela aponta o estado de pobreza absoluta dessas famílias
que inviabilizava a dedicação e o deslocamento
delas até os locais de reunião, que aconteciam
geralmente em lugares diferentes. "Além disso,
faltaram recursos financeiros que garantissem o próprio
funcionamento do comitê", completa. O contato com
as famílias agora passou a ser esporádico, também
devido ao fato de que elas se mudam com muita freqüência
de um bairro a outro.
Impunidade
Passados dez anos, o quadro atual é de impunidade.
Segundo levantamento do CDMP, dos 19 casos ocorridos, 10 encontram-se
com inquéritos parados nas Delegacias de Polícia,
1 inquérito não foi localizado, 3 foram arquivados
por determinação judicial, 3 estão aguardando
julgamento, 2 foram julgados, sendo 1 julgamento anulado e
o outro teve o acusado condenado e, logo em seguida, a ele
foi concedida liberdade condicional.
"É
por isso que estamos entrando com uma denúncia junto
à Comissão dos Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos (OEA)", diz a advogada Joisiane
Gamba. Ela reclama de os órgãos de Segurança
e de Justiça do Estado terem feito muito pouco para
esclarecer os homicídios ou identificar os suspeitos
dos mesmos. Devido à morosidade e fragilidade das investigações
da polícia, pairam algumas hipóteses. Uma delas
é de as crianças terem sido executadas por um
maníaco sexual. Há também a possibilidade
de os casos estarem relacionados com algum rito satânico
ou até mesmo com o tráfico de órgãos.
Joisiane informa ainda que no documento enviado a OEA consta
um histórico dos casos e um pedido de condenação
do Estado brasileiro por não criar condições
básicas para garantir a sobrevivência de suas
crianças e de seus adolescentes.
Do final do ano passado para cá, o pessoal do Centro
de Defesa vem contando com um forte apoio junto ao Ministério
Público. A pedido da Procuradoria da Justiça
do Maranhão, o promotor Paulo Avelar passou a coordenar
o trabalho que, antes, vinha sendo feito pelos seus colegas
nas comarcas dos outros municípios. Ele também
critica "a falta de aparelhamento da própria Polícia
e perícia técnica para se chegar à autoria
dos crimes".
Se depender dele, o Ministério Público não
ficará calado diante dos crimes. Pelo contrário,
"vamos continuar cobrando para que nada fique impune".
É
nessa promessa que apostam todas as fichas não só
Nelma, Joisiane e os colegas do Centro de Defesa, mas sobretudo
Dona Rosária e o marido. Eles já pensaram até
em mudar de bairro, para ver se aliviam a dor da perda de
Luizinho e, principalmente, para proteger os outros filhos.
E não é por menos: têm medo de novas vítimas.
"Queria
ser mecânico"
"O
nome dele era Ranier, mas o apelido era Rani. Gostava muito
de brincar com pipa e bolinha de gude. Estudava de manhã,
e a tarde era pra ele brincar. Estava cursando a sexta série,
com 10 anos. Tinha dois cachorros, Lubinho e Lubinha. E ele
sempre me dizia que quando crescesse queria ser mecânico,
pra me dar uma condição melhor. Ele sempre me
dizia isso. Era alegre, como qualquer outra criança.
Gostava muito de assistir desenho, ele adorava desenhos. Gostava
de música, reggae. Amigos ele tinha. Nas horas vagas,
ele gostava de jogar bola com os amigos num campinho lá
do bairro. Gostava de brincar também de carro. Trabalhou
também num sacolão. O Ranier sempre me faz falta,
lembro sempre dele: quando vejo o "pica-pau", na
hora de dormir... Hoje mesmo sonhei com ele."
Dona Normélia Silva, que já mudou de casa umas
quatro vezes, na tentativa de "esquecer" a tragédia.
Ranier desapareceu em 17 de setembro e seu corpo foi encontrado
cinco dias depois, apresentando sinais de tortura e com seus
órgãos genitais extirpados. Foi o primeiro caso
dos "meninos emasculados", seguido pelo Centro de
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Pe.
Marcos Passerini.
Retrato
do Maranhão
37,1% da violência contra crianças e adolescentes
no Maranhão é praticada por familiares.
53% da população de São Luís têm
de 0 a 17 anos de idade.
Apenas 31% das crianças recebem vacinação
básica no Estado.
28,2% das crianças de 0 a 14 anos são atingidas
pelo analfabetismo.
Fonte:
Centro de Defesa dos Direitos da Criança do Adolescente
Pe. Marcos Passerini
Tragédia
anunciada
"Mais
um garoto é violentado e morto no Maranhão."
A notícia ganhou destaque nos principais jornais do
país do dia 10 de outubro.
Com o assassinato de Welson Frazão Serra, de 13 anos,
o número dos crimes sobe para 20. O perfil de Welson
é semelhante ao dos demais garotos que já foram
assassinados e emasculados. Todos eram pobres, tinham entre
9 e 15 anos e moravam em área de ocupação.
Welson foi violentado, teve seus órgãos genitais
extirpados, um dedo da mão direita cortado e ainda
foi asfixiado, segundo peritos do Instituto de Criminalística.
Seu corpo foi encontrado em um sítio desabitado da
capital. A notícia da morte chegou também à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA
(Organização dos Estados Americanos), que está
processando o Brasil por causa dos outros 19 casos. No final
de setembro, a OEA recebeu a denúncia enviada pelo
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Padre
Marcos Passerini.
Voltar
|